"(...) O que chega a doer, tamanha a indignação que causa, é essa determinação tão certa, absoluta, do lugar da mulher na sociedade. Estamos tão submersos nessa compreensão torta de mundo e de vida, tão vendados, que é quase improvável perceber o quanto a lógica dominante nos afeta nas mínimas práticas, nos nossos sentimentos, até no que acabamos por entender por felicidade e realização. Não tenho dúvidas de que essas trabalhadoras encontram suas satisfações servindo à família. Não me atrevo a questionar a certeza da não marginalização e a segurança que mulheres vítimas de violência doméstica devem carregar ao não abandonar o lar, com seus filhos por criar (o lar que, segundo dados recentes, ainda é objeto de posse dos maridos agressores). Essa definição do papel feminino, tão irracionalmente absorvida, é a principal responsável por usurpar de tantas mulheres a chance de construção de um pensamento novo, de politização. Quem pode questionar a ordem se desdobrando entre conquistar o pão dos filhos e seus cuidados?
Pesquisando um pouco mais, me deparo com falas de mulheres que se envolveram com o tráfico no intuito de dar sustento aos filhos, abandonadas que já foram pelos companheiros. Dando um passeio despretensioso no centro comercial da cidade, é impossível não notar como as mulheres dominam os setores de empregabilidade informal, ganhando salários irrisórios. Tomando um ônibus, não consigo deixar de pensar que logo estarei fazendo parte de um diálogo político, com homens e mulheres, planejando o que fazer do futuro, lendo um livro, repensando o mundo e a mim mesma. Mas nesse mesmo ônibus, disputo apertadamente espaço com outras mulheres, tão diferentes de mim, cansadas e de olheiras alarmantes, marcadas pela jornada diária dividida entre trabalho, filhos e marido, prontas para mais uma rotina de trabalho, despreocupadas com maquiagem e saltos altos. Às vezes feridas na pele, pelo homem que amam, outras vezes, feridas na alma, pela vida. Todas, sem perspectivas de emancipação efetiva."
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